Na década de 1970, a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) iniciou uma política de inclusão étnica, com o intuito de diversificar seu quadro de alunos. Nesse contexto, estudantes afro-americanos ingressaram no curso de cinema, onde produziram filmes inovadores, que questionavam a indústria de Hollywood, trazendo as narrativas negras para o centro da cena. Este amplo conjunto foi designado pela crítica, posteriormente, como L.A. Rebellion. Parte dessa produção pode ser assistida na Mostra L.A. Rebellion que o Instituto Moreira Salles apresenta, nesse mês de fevereiro.

A seleção será exibida no IMS Paulista, de 19 a 23/2. A mostra reunirá 14 títulos, produzidos principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. São curtas, médias e longas exibidos em cópias em formatos digitais ou em 16 mm, cedidas pelo arquivo da UCLA. A curadoria da mostra é de Luís Fernando Moura, pesquisador e programador de cinema, e de Victor Guimarães, crítico, curador e professor.

A programação inclui debates e apresentações de críticos e pesquisadores. No dia 23 de fevereiro, às 18h, o crítico Heitor Augusto e a jornalista Mariana Queen Nwabasili conversarão sobre os diálogos entre as obras da L.A. Rebellion e o cinema contemporâneo.

A mostra exibida no IMS inclui títulos de nomes célebres, como Charles Burnett (vencedor de um Oscar honorário em 2018) e Julie Dash (primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem estreado comercialmente nos EUA), além de outros menos conhecidos, como Zeinabu irene Davis, Alile Sharon Larkin, Haile Gerima, Larry Clark e Billy Woodberry. Compromissados com um projeto de cinema autônomo, eles construíram suas obras na UCLA, em um contexto ainda marcado pelas tensões das lutas pelos direitos civis.

Segundo os curadores, os diretores buscavam novas formas de representação, produzindo um cinema que fosse voltado para o público negro. “Contra o que, exatamente, eles se rebelavam? Em primeiro lugar, contra o quase século de imagens que os precedia, esse espelho embaçado de Hollywood em que, na maioria esmagadora do tempo, negros e negras não podiam se reconhecer. Era preciso inaugurar um outro ambiente cinematográfico, próximo às sensibilidades e aos desejos que surgiam das comunidades afro-americanas”.

Realizados sempre com orçamentos mínimos, os filmes eram produzidos de forma colaborativa. O cineasta Charles Burnett, por exemplo, atuou como roteirista, fotógrafo e operador de câmera em várias obras dos seus colegas. “Os créditos dos filmes revelam como essa produção era oriunda de um fazer em comunidade, no sentido mais simples e poderoso da palavra”, reiteram os curadores.

Ainda que com tramas e estilos distintos, os diretores tocavam em pontos em comum, como a busca de uma identidade negra autônoma, presente em Diário de uma freira africana (1977), de Julie Dash, ou Seus filhos voltam pra você (1979), de Alile Sharon Larkin; a crônica do cotidiano no gueto, retratado em Bush Mama (1979), de Haile Gerima; ou ainda a referência aojazz norte-americano, em Dando um rolê (1977), de Larry Clark. Em suas obras, eles também dialogavam com os cinemas modernos produzidos na África e na América Latina, em busca de um novo olhar que se opusesse aos modelos coloniais.

No conjunto de filmes que compõe a L.A. Rebellion, também se destaca a produção das cineastas, cujas obras questionavam os estereótipos associados à figura da mulher negra. No longa-metragem Mulher africana, EUA (1980), por exemplo, a diretora Omah Diegu se inspira em sua própria trajetória para contar a história de uma imigrante nigeriana que luta para sustentar sua filha. A diretora Zeinabu irene Davis, por sua vez, constrói uma reflexão sobre o corpo feminino no curta Ciclos (1989).

Esta seleção evidencia trabalhos que, ainda que pouco conhecidos pelo público, se tornaram uma grande referência para a produção contemporânea. “Poucas vezes na história existiu, até nossos dias, um conjunto tão vigoroso de filmes feitos de preto para preto, de preta para preta, e que se afirmassem com tamanhas altivez e independência. Os filmes dessa geração jovem e talentosa representam um tesouro dos mais valiosos para o presente e o futuro do cinema”, afirmam os curadores.



P R O G R A M A Ç Ã O


terça, 19 de fevereiro

19h30 Bush Mama ­_sessão seguida de fala dos curadores Luís Fernando Moura e Victor Guimarães


quarta, 20 de fevereiro

19h30 Abençoes seus pequeninos corações ­_após a sessão, haverá uma fala com Mariana Shellard e Aaron Cutler


quinta, 21 de fevereiro

19h30 Exibição de Curtas (Diário de uma freira africana / Mulher africana / Filha da resistência) ­_os três curtas serão exibidos na mesma sessão
21h00 Bem-vindo de volta, irmão Charles _sessão seguida de fala do crítico Heitor Augusto   


sexta, 22 de fevereiro

19h30 Exibição de Curtas (Um bocado de amigos / Ilusões) ­_os dois curtas serão exibidos na mesma sessão
21h00 Uma imagem diferente _sessão seguida de fala da jornalista Mariana Queen Nwabasili           


sábado, 23 de fevereiro

16h00 Exibição de Curtas (O cavalo / Ciclos / A bolsa / Seus filhos voltam pra você) ­_os quatro curtas serão exibidos na mesma sessão
18h00 DEBATE L.A. Rebellion, passado e presente _conversa com Heitor Augusto, Mariana Queen Nwabasili e mediação de Victor Guimarães _grátis*    
20h30 Dando um rolê _sessão seguida de fala de Victor Guimarães    



S I N O P S E S


Mulher africana, EUA
African Woman, USA
Omah Diegu [Ijeoma Iloputaife] | EUA | 1980, 20', digital
Uma imigrante nigeriana estuda dança em uma universidade nos Estados Unidos enquanto luta para conseguir um emprego e sustentar a filha, que passa os dias sozinha em casa. Seu cotidiano é atravessado por episódios de sexismo e racismo, até o ponto em que um homem se passa por produtor para se aproximar e abusar sexualmente da menina. Mulher africana, EUA tem fortes elementos autobiográficos, refletindo os conflitos vivenciados pela própria Omah Diegu (nascida Ijeoma Iloputaife, como assina no filme), estudante nigeriana que chegara à UCLA para estudar cinema no fim dos anos 1970. Com uma trilha sonora constituída por músicas tradicionais africanas e pelo jazz de John e Alice Coltrane, e uma construção visual arrojada (a sequência final é particularmente impressionante), o filme combina o talento narrativo da realizadora (que ela atribui a suas vivências em solo africano que remontam à infância) e sua experiência anterior como pintora na Nigéria. Omah Diegu realizaria, ainda no contexto da escola, os curtas-metragens Obaledo (1980) e Atilogivu: The Story of a Wrestling Match(1982), e, mais tarde, o longa autobiográfico The Snake in My Bed (1995), financiado pelo governo alemão.


Abençoe seus pequeninos corações
Bless Their Little Hearts
Billy Woodberry | EUA | 1983, 80’, DCP
Reestreado em circuito nos EUA em 2017 pela distribuidora Milestone, Abençoe seus pequeninos corações é centrado em Charlie, um desempregado que arranja bicos para sustentar a família, e Andais, que precisa administrar a vida doméstica e cuidar dos filhos. Este drama, trabalho de conclusão de mestrado na UCLA, se passa no bairro de Watts, em Los Angeles, onde orquestra o choque entre dois movimentos de vida, de marido e mulher, e, na mais fina tradição da crônica social desenvolvida no contexto da L.A. Rebellion, atenta para a complexidade dos laços e das relações entre as pessoas – para a empatia em meio ao conflito moral –, por meio de aguda sensibilidade realista. Billy Woodberry se reuniu aqui ao eventual colaborador e colega de classe Charles Burnett – que já havia sido um dos fotógrafos de seu curta A bolsa, três anos antes –, responsável pelo roteiro deste que é até hoje o único longa-metragem de Woodberry como diretor. A escrita melodramática de A bolsa, calcada na compaixão diante de ruínas morais – como fazer o que se diz certo se as coisas do mundo não vêm vindo bem? –, é retomada para que se desenvolva talvez um dos filmes da L.A. Rebellion em que as consequências da dramaturgia são encaradas de forma mais frontal, longa e dedicada. É preciso, como na melhor colaboração entre cinema clássico e consciência crítica, que a cena comunique paixão e contingência do conflito. Para tanto, Nate Hardman e Kaycee Moore, protagonistas, estão afiados e partilham pontos de vista de densidade semelhante, que não só expressam a expectativa histórica dos papéis de gênero como problema – político e dramático –, como catalisam o retrato melancólico de um tempo e de um espaço. Como em A bolsa, o valor do dinheiro e do trabalho na sociedade americana é objeto e disruptor de uma hipótese, enquanto o jazz empresta notas emocionais e subtexto político.


Bush Mama
Haile Gerima | EUA | 1979, 97', 16 mm
Das obras-primas fundacionais do que se entende por L.A. Rebellion, o crucial Bush Mama foi o trabalho de conclusão de mestrado de Haile Gerima – etíope que migrara para Los Angeles em 1967 – na UCLA, em 1975. Aqui está um dos encontros do diretor com a fenomenal atriz Barbara O. Jones – uma das mais prolíficas do contexto da L.A. Rebellion – e uma veneração capital à sua presença em cena, exibida em cópia cedida pelo arquivo da universidade. A ficção desbrava o drama agudo de Dorothy, moradora de um inquieto quarteirão do bairro de Watts, que se vê diante de um excesso de realidade: seu companheiro está preso, enquanto ela precisa cuidar de sua filha e de uma gestação, enfrentando o protocolo míope da assistência social, a ubiquidade das normas disfuncionais e o bombardeio do juízo público em um estado de coisas em que a violência dá molde às dinâmicas coletivas. Dedicado ao ponto de vista da personagem, Gerima conduz a narrativa como uma arrojada busca de formas e de forças, como quem está seguro de que, para comunicar um desejo, é preciso inventar uma alternativa. É preciso ensinar-aprender a filmar a mobilidade (concreta e simbólica) de uma mulher negra – de Dorothy –, no branco cinema. O que deve acontecer com a representação para que Dorothy se mova? Como inscrever o olhar de uma mulher como ela num filme? A personagem de Barbara O. Jones nos guia como projeto ativo de corpo-olhar, e o tempo da peregrinação termina por colapsar, de dentro da dramaturgia, os fluxos romanescos, criando estonteantes sequências que não cabem no compasso clássico, ritmadas então como um entorpecido jazz, porque atento demais: a política aqui é musical como condição discursiva, e a realidade será assim movida pelos devaneios entre a dicção e a vertigem – como a palavra que conclama: mova-se, Dorothy! Mova-se com Dorothy, espectador! Gerima aqui talvez tenha inventado uma pedagogia (a se apreender).


Filha da resistência
Child of Resistance
Haile Gerima | EUA | 1972, 36', 16 mm
Era outubro de 1970 quando Angela Davis foi presa em Nova York, identificada como cúmplice no caso dos irmãos de Soledad, três presidiários negros acusados de assassinar um policial branco. Após ver imagens da autora e ativista algemada, o então estudante de cinema Haile Gerima teve um sonho, que materializou em Filha da resistência. São deslumbrantes 35 minutos de loucura de uma presidiária que, interpretada pela grande Barbara O. Jones – protagonista também do posterior primeiro longa do diretor, Bush Mama –, se percebe obsediada por uma profusão de símbolos da violência sofrida por pessoas negras na América. Confinada na cela, resta à prisioneira ritualizar a ruína da libertação – e a desesperança individual se descobre no movimento da coletividade. Como comenta a ensaísta Kariima Ali, o monólogo imaginado pela personagem em muito desdobra os escritos revolucionários de George Jackson, um dos presos no caso vinculado a Davis – enquanto, do outro lado das grades, desfilam algemas, correntes, cadeiras elétricas, mas também expressões do hedonismo capitalista, como um irônico playground de tormentas que codifica a silhueta da nação americana –, ou o que Jackson chamaria de "'mercado de pulgas' do fascismo e do capitalismo de consumo". É frontal a maneira de Gerima desbravar a substância da violência, busca mais exclamativa em seus filmes que nos de muitos de seus colegas de geração, e suas incontornáveis obras-primas inaugurais – como Filha da resistência – elegem a instituição policial como concreção contemporânea da escravidão de pessoas negras. A partir dela, aqui se desenvolve uma espécie de cosmologia moderna da opressão, cuja missão é de comunicação popular e cujo afluente final é, em tom amargo, mas luminoso, a reivindicação persistente da reunião para a rebelião.


Ciclos
Cycles
Zeinabu irene Davis | EUA | 1989, 17', digital
A personagem da atriz Stephanie Ingram aguarda a menstruação, e sua apreensão logo se aprofunda em transe. Confinada em um apartamento, elege uma faxina, depois um banho, para se distrair da espera. Se o alvoroço da dúvida reivindica um futuro – o que será amanhã?, para onde vou? são questões que martelam como mantra maior, de rima histórica –, o espírito da personagem vai se desgarrando do script social, para se reinaugurar em pequenos prazeres, prosaicas, mas fabulosas preces, signos que se derramam do tempo cotidiano em dança entre corpo, filme e história. Hoje professora da Universidade de San Diego, a diretora Zeinabu irene Davis já havia realizado um primeiro mestrado em Estudos Africanos na UCLA quando, em 1989, terminou seu segundo, adquirindo um título de Belas-Artes em Produção de Cinema e TV. Ciclos é fruto imediato desse processo e, embora exemplar já tardio nas gerações da L.A. Rebellion, serve de entrada em retrospecto para uma perspectiva de gênero que é das mais argutas buscas do conjunto, levada a cabo não exclusivamente, mas de maneira direta, por algumas das mulheres diretoras ligadas ao grupo. Como sugere a pesquisadora Ayanna Dozier, aqui Davis investiga o corpo feminino negro não como simples representação, calcado nos enquadramentos sociais dos corpos das mulheres negras. Em vez disso, transfigura a presença de Stephanie em afetos que agitam a escrita fílmica e recuperam os valores de uma poética do corpo. Em Ciclos, "o corpo feminino negro é apresentado como uma força de ação". No horizonte, afinal, uma coletividade se anuncia à visão, modesta e lindamente.


Diário de uma freira africana
Diary of an African Nun
Julie Dash | EUA | 1977, 15', digital
Em mais uma homenagem ao corpo da atriz Barbara O. Jones, Julie Dash adapta uma história da escritora Alice Walker, pondo em cena o fluxo de consciência de uma freira negra vivendo em Uganda. Em uma visada lírica da feminilidade negra que remete ao cânone experimental, ao do filme-ensaio e ao estudo do rosto no cinema, este compêndio de confissões muito bonitas amarra e desamarra os vértices de um triângulo entre a prece católica, as origens africanas da espiritualização – note-se, a propósito, a trilha sonora percussiva – e a autonomia do corpo, em que se deposita a expectativa do gozo, da felicidade, da mobilidade, da autenticidade – perceba-se os enquadramentos, mas também os desenquadramentos, que buscam os mínimos movimentos da personagem. Julie Dash tem em seu currículo filmes de época e que observam personagens em êxodo, como o seu paradigmático longa Filhas do pó (Daughters of the Dust, 1991), e com esse retorno sistemático a capítulos da diáspora – pela recriação de diferentes paisagens e estatutos, da história social à história do espetáculo, como em Ilusões –, parece levar a cabo o franco projeto de especular documentos e mitos para desenhar pontas soltas de uma genealogia outra para a existência da mulher negra em contexto colonial, em variadas expressões geográficas. A professora da Universidade de Chicago Allyson Nadia Field registra que Dash, aqui, estava impressionada com a descrição do conflito íntimo vivido pela freira em Walker, uma personagem que sabia o paradoxo que era "trazer a morte para um povo imaginário" ao mesmo tempo que estava a seu serviço – e cujo ponto de vista obliterado é então exposto pela imaginação à nossa percepção da história. [O texto de Allyson Nadia Field é um dos publicados (em inglês) no livro L.A. Rebellion: Creating a New Black Cinema, editado em 2015 pela Universidade da Califórnia]


Uma imagem diferente
A Different Image
Alile Sharon Larkin | EUA | 1982, 52', 16 mm
Alana (Margot Saxton-Federella) é uma jovem que trabalha em um escritório enquanto desenvolve estudos de pintura. Seu cotidiano é marcado pelo esforço em se tornar uma mulher independente e se rebelar contra as convenções impostas por uma sociedade machista e racista. Seu colega de escritório e amigo, Vincent (Michael Adisa Anderson), parece o parceiro ideal nessa busca por construir autonomamente uma outra imagem de negritude. A amizade entre os dois parece contrariar os estereótipos e subverter as expectativas de todos ao redor, até o momento em que, enquanto Alana dorme a seu lado, Vincent se aproveita da situação e tenta estuprá-la. Uma imagem diferente é uma investigação sobre como a masculinidade tóxica é formada em uma cultura visual marcada pela extrema objetificação do corpo feminino. Outdoorspublicitários e revistas pornográficas atravessam a paisagem urbana retratada pelo filme, em contraste com as fotografias e pinturas africanas que povoam a casa da protagonista e sinalizam um outro caminho de representação das mulheres. Mais do que elementos de fundo, porém, essas imagens são constantemente convocadas pela montagem – repetidas, justapostas, tensionadas –, assumindo a centralidade em uma ficção que se abre para o gesto analítico típico do ensaio fílmico. A música original, de forte inspiração africana, também contribui para a construção de um filme fortemente influenciado pelo pan-africanismo que marcou o processo de formação de uma geração de jovens negros universitários nos Estados Unidos – e teve grande impacto na UCLA naquele momento. Esse olhar para a África como fonte de uma nova consciência política pode ser percebido também no filme anterior de Alile Sharon Larkin, Seus filhos voltam pra você, ou mesmo em outros filmes da L.A. Rebellion, como Bush Mama e Mulher africana, EUA.


O cavalo
The Horse
Charles Burnett | EUA | 1973, 14', DCP
A paisagem desolada de um faroeste moderno. A imobilidade, o silêncio, o tempo que escorre lentamente enquanto um grupo de homens brancos espera na varanda de uma casa de fazenda. Um menino negro se despede de um cavalo doente prestes a ser sacrificado, enquanto os outros esperam pela chegada do pai do garoto para realizar o trabalho. Essa descrição sumária aponta para um filme em que os eventos narrativos são menos importantes do que uma atmosfera singular, composta por uma exuberante paleta de cores e por uma montagem que aposta na qualidade dos silêncios e na duração. O desejo inicial por filmar O cavalo se deve ao impacto provocado em Charles Burnett por um conto de William Faulkner (“The Bear”): o realizador desejava compor um filme que partilhasse algo da atmosfera sulista de Faulkner e de sua habilidade para construções metafóricas. Naquele momento, Burnett já estava imerso no longo processo das filmagens de seu primeiro longa-metragem, O matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977) – seguramente o filme mais conhecido da L.A. Rebellion –, mas se viu obrigado a esperar, porque o ator que ele escolhera para o papel principal estava na prisão, e sua liberdade condicional era repetidamente adiada. Foi então que decidiu partir com a pequena equipe para uma região rural a cerca de 300 quilômetros de Los Angeles para filmar o curta-metragem. Nascido em Mississippi em 1944, Burnett se mudara para L.A. ainda criança, em uma onda migratória partilhada por muitas famílias negras sulistas que partiram para a Califórnia em busca de oportunidades. A carga simbólica do sul escravocrata, porém, pode ser notada em filigrana em vários de seus filmes. Nas trocas de olhares de O cavalo, o realizador enfrenta essa iconografia com a sutileza que lhe é peculiar: o racismo torna-se essencialmente uma questão de olhar. No dizer de Burnett, o filme é “uma alegoria sobre o poder sulista e seu declínio”. [Várias entrevistas de Charles Burnett foram reunidas no livro (em inglês) de Robert E. Kapsis, Charles Burnett: Interviews, editado pela University Press of Mississippi em 2011]


Ilusões
Illusions
Julie Dash | EUA | 1982, 36', DCP
Durante a Segunda Guerra, o encontro entre Mignon Duprée (Lonette McKee), uma assistente de produção em Hollywood, e Esther Jeeter (Rosanne Katon), cantora negra contratada para dublar atrizes brancas em cenas musicais, torna-se um ensaio com sabores satíricos sobre a indústria cultural, no que se revela um raro debate fílmico sobre colorismo. As duas personagens são como espelhos turvos uma da outra, talvez duros de encarar pelo que deixam entrever, mas preciosos ao reconhecimento – o que temos em comum? O que nos diferencia? As duas mulheres terminam por desenvolver uma espécie de cumplicidade, sempre desconcertante, já que Mignon, de pele clara, passa por branca diante de seus colegas de trabalho, em vias de ter sua identidade descoberta, quiçá afirmada. Este, que é o trabalho de conclusão de mestrado de Julie Dash – só restaurado em 2014 –, é um caso muito incomum de filme no conjunto da L.A. Rebellion, em que a maioria dos atores é branca (uma série de trabalhos não têm sequer um corpo branco em cena), ao mesmo tempo que é também exemplar raro de narrativa filiada às formas mais clássicas do cinema estadunidense. Há, nesse sentido, uma espécie de infiltração necessária nas estratégias do olhar hegemônico, vistas por uma diretora negra que resolveu filmar segundo a gramática do establishment branco macho. Mignon, que termina por viver numa espécie de interseção entre dois horizontes de experiência social, é também um laboratório imprevisto para a representação (pública e fílmica) do racismo e, diante de Esther, algo em seu drama próprio talvez entre em ruína ou se transforme, restando entender ainda como vai afetar a sociedade instituída ao redor, que dela demanda e a ela convoca. A propósito, a voz usada na dublagem da atriz branca é a de Ella Fitzgerald, nas canções “The Starlit Hour” e “Sing Me a Swing Song, and Let me Dance”.


Dando um rolê
Passing Through
Larry Clark | EUA | 1977, 105', DCP
Realizado como filme de conclusão de mestrado na UCLA por Larry Clark – que já havia dirigido na escola o curta Tamu (1970) e o média-metragem As Above, So Below (1973) –, o filme tem como fio narrativo a história de Eddie Warmack (Nathaniel Taylor), saxofonista de jazz que deixa a prisão após cumprir sua pena pelo assassinato de um gângster branco. Enquanto tenta convencer seus colegas músicos a escapar da máfia da indústria fonográfica, que lucra com a exploração do suor e do talento dos artistas negros, Eddie parte em uma busca – ao lado de sua companheira Maya (Pamela B. Jones) – por seu avô, o lendário mestre jazzista Poppa Harris, interpretado pelo veterano Clarence Muse, ator com uma prolífica carreira de mais de 150 papéis e considerado o primeiro afro-americano a “estrelar” um filme. À medida que a narrativa se move entre os conflitos raciais e a busca pela identidade negra, o filme se transforma em experiência visual e sonora inigualável. De forma ainda mais intensa do que nos filmes anteriores de Clark, a ficção se desdobra ora em ensaio – a partir da incidência de imagens de arquivo das lutas de liberação negra na África e nos Estados Unidos –, ora em pura investigação visual e sonora, embalada pelo jazz de vanguarda da Pan-Afrikan Peoples Arkestra, liderada por Horace Tapscott. Mais do que oferecer um tema para o enredo ou um acompanhamento musical, o jazz é tratado por Larry Clark como um princípio formal, que inspira o trabalho fortemente experimental com as cores, as múltiplas camadas narrativas, as idas e vindas entre passado e presente que desafiam qualquer noção de linearidade, a extrema musicalidade da montagem. Para Clyde Taylor (historiador responsável por cunhar o termo L.A. Rebellion), trata-se do “mais ambicioso esforço de construir um filme em torno dos ritmos e dos movimentos da tradição jazzista”. Para o crítico francês Raphaël Bassan, em certa medida, Dando um rolê poderia ser considerado “o único jazz film da história do cinema”. [Um grande projeto de pesquisa coletivo, intitulado Liquid Blackness, foi iniciado na Georgia State University, nos EUA, inspirado pelo encontro das pesquisadoras e pesquisadores comDando um rolê. Uma coletânea de ensaios a partir do filme (em inglês) pode ser conferida aqui: bit.ly/lareb2] [A frase de Clyde Taylor faz parte do texto curatorial da primeira retrospectiva a reunir alguns dos filmes dessa geração, em 1986, no Whitney Museum of American Art.


A bolsa
The Pocketbook
Billy Woodberry | EUA | 1980, 13’, DCP
É das coisas mais lindas o que Billy Woodberry fez neste curta baseado em conto de Langston Hughes. Ambientado no bairro de Watts, em Los Angeles, e sob fotografia de Charles Burnett, Gary Gaston e do brasileiro Mario Silva, uma epopeia infantojuvenil cindida em dois atos: de dia, o olhar dos meninos sobre o tempo da brincadeira e os indícios de vida, enquanto um nostálgico blues de Lead Belly se repete e faz do filme uma cantiga em disparada. À noite, o garoto que brincava tenta roubar a bolsa de uma senhora, negra como ele, que observava uma vitrine na calçada. A reação da senhora ao impropério é levar o menino Ray para casa e lhe dar, sim, um aconchego maternal, além de uma razoável lição de moral, que, no entanto, é discretamente subversiva: porque também ela admite não poder ser o eixo de uma sociedade integrada, pequeno-burguesa. Pelo contrário, é uma espécie de mesma de Ray – sem nunca poder ser exatamente, e, portanto, não seria capaz de compreender o garoto de todo. Daí a melancolia da comunidade, que a faz dissensual e que guarda a preciosa singularidade de cada rosto. A bolsa termina por se distinguir como um ensaio melodramático que tem como um dos objetos mais caros a insuficiência da sociologia em traduzir o que os afetos comunicam, e vice-versa. Woodberry, sagaz cronista e filiado a traços da imaginação neorrealista, é certamente um par criativo de Charles Burnett, interessado na correspondência e na defasagem entre os movimentos do mundo e os dramas mais íntimos, secretos, entre a dor e os pequenos prazeres, entre o destino e a fuga. Este filme – como o longa Abençoe seus pequeninos corações, não à toa roteirizado por Burnett – voltou a circular nos últimos anos graças ao importante trabalho de distribuição da independente Milestone.


Um bocado de amigos
Several Friends
Charles Burnett | EUA | 1969, 22', DCP
O segundo filme estudantil de Charles Burnett, após um projeto sem título no ano anterior, hoje considerado perdido, tem a magnitude de uma ruptura radical: as periferias negras norte-americanas parecem filmadas pela primeira vez. Prosaicas cenas cotidianas – uma briga, o conserto de um carro, a tentativa de mover uma máquina de lavar – filmadas nas imediações de South Central, bairro onde Burnett cresceu, adquirem a força da inauguração de um mundo feito de gestos, posturas, jeitos de falar que o cinema hollywoodiano negligenciou ou pasteurizou por décadas a fio. Essa crônica negra prefigura a obra-prima O matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977), estabelece os principais temas e as marcas do estilo do cineasta mais conhecido da L.A. Rebellion, laureado com um Oscar honorário pela carreira em 2018. Nas palavras de Burnett em uma entrevista, o tema do filme é “essa sensação que você tem às vezes, quando atinge um ponto em que existe um sentimento de que você não vale nada”. Filmado em 16 mm, com um elenco formado por atores não profissionais, sincronizado e montado à mão nas dependências da UCLA, o método de realização praticado em Um bocado de amigos sumariza os principais traços das produções da L.A. Rebellion: baixo orçamento, trabalho intensamente colaborativo entre os estudantes (que exerciam diversas funções nos filmes uns dos outros), liberdade de experimentação. O filme tem participação, na equipe de som, do brasileiro Mario Vieira da Silva, à época estudante da UCLA, e colaborador íntimo de Burnett. Alguns anos mais tarde, Silva seria operador de câmera em A bolsa, de Billy Woodberry. [Várias entrevistas de Charles Burnett foram reunidas no livro (em inglês) de Robert E. Kapsis, Charles Burnett: Interviews, editado pela University Press of Mississippi em 2011]


Bem-vindo de volta, irmão Charles
Welcome Home Brother Charles
Jamaa Fanaka | EUA | 1975, 91', DCP
O contexto da realização de Bem-vindo de volta, irmão Charles não poderia ser mais controverso. Uma das maneiras de compreender o repertório da L.A. Rebellion é situá-lo como um contraponto crítico às imagens sedutoras de violência e erotismo da contemporânea produção da Blaxploitation, esse polêmico conjunto de filmes dos anos 1970 em que um intenso protagonismo negro no cinema comercial estadunidense convivia, segundo seus críticos, com a veiculação de clichês nocivos sobre a negritude. Em consonância com as posições do movimento negro da época, os estudantes afro-americanos da UCLA teciam fortes críticas a essa produção, buscando afastar-se o máximo possível de sua estética. O próprio Jamaa Fanaka realizara na escola, em 1972, o curta-metragem A Day in the Life of Willie Faust, or Death on the Installment Plan, que joga com os códigos da Blaxploitation, mas oferece uma visão sombria e pessimista sobre o destino de um jovem viciado em heroína (interpretado pelo próprio Fanaka). Nesse contexto, é possível imaginar a surpresa de todos quando Fanaka propôs, como um de seus projetos de graduação, realizar um longa-metragem contando a história de um ex-presidiário que decide se rebelar contra o sistema racista que o encarcerou injustamente, cometendo uma série de estupros e assassinatos em uma vingança brutal contra seus algozes brancos (com a ajuda de insólitos superpoderes adquiridos como resultado dos experimentos científicos aos quais fora submetido na prisão). Esse enredo tão próximo do universo da Blaxploitation seria filmado, porém, em um contexto diametralmente oposto ao das produções comerciais: com um orçamento formado por bolsas de mecenato cultural e economias de seus pais, a produção se arrastaria por 17 meses, com filmagens limitadas aos fins de semana, para permitir o acesso irrestrito aos equipamentos da universidade (com o colega Charles Burnett como operador de câmera). O resultado econômico não poderia ser mais auspicioso: o filme conseguiria um contrato de distribuição, arrecadaria US$ 500.000 nas salas de cinema e permitiria a Fanaka realizar outros dois longas-metragens ainda como estudante: Emma Mae (1976) e Penitentiary (1979), tornando-se o único diretor de sua geração a ter obtido algum sucesso comercial naquele momento. O resultado estético não poderia ser mais complexo e desafiador: equilibrando-se entre o humor nonsense e a crítica social radical, entre a adesão e o distanciamento frente aos códigos da Blaxploitation, o filme trabalha uma série de estereótipos raciais em múltiplas camadas de interpretação.


Seus filhos voltam pra você
Your Children Come Back to You
Alile Sharon Larkin | EUA | 1979, 27', 16 mm
O processo de construção da identidade de mulheres negras é o mote principal da composição das protagonistas na obra de Alile Sharon Larkin realizada na UCLA. Desde o curta-metragem The Kitchen (1975), que narra os conflitos de uma mulher com os padrões de beleza que excluem seu cabelo crespo, até o média Uma imagem diferente, que retrata a busca de uma jovem por reinventar o entendimento sobre sua descendência africana – enquanto enfrenta a masculinidade tóxica que a rodeia por todos os lados –, diferentes aspectos são trabalhados em diferentes filmes. Em Seus filhos voltam pra você, Larkin explora esse processo a partir da perspectiva de uma criança, Tovi, interpretada por Angela Burnett – a sobrinha de Charles Burnett, que também atua em O matador de ovelhas (Killer of Sheep, Charles Burnett, 1977) e Abençoe seus pequeninos corações (Billy Woodberry, 1980). A menina vive com a mãe, Lani (Patricia Bentley King), que luta para criá-la sozinha enquanto o pai partiu para a África para se juntar à guerrilha do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Enquanto a mãe se divide entre o trabalho doméstico e as idas ao escritório da assistência social, Tovi passa parte do tempo com uma tia rica, Chris (Simi Nelson), irmã de seu pai, que tenta conseguir por diversos meios a guarda da menina. Um dos traços formais mais marcantes de Seus filhos voltam pra você é o esforço da câmera por enxergar através dos olhos de Tovi, cuja descoberta do mundo – de suas desigualdades e injustiças – coincide com a formação de sua consciência política, atravessada pela memória do pai e pelos ensinamentos de sua escola afrocêntrica progressista. Nas palavras da influente crítica americana B. Ruby Rich, “Larkin é uma cineasta jovem e original, cujo orgulho e sensibilidade só são comparáveis a seu profundo senso estético. Se há um filme tão delicado quanto este, eu desconheço.” [A frase de B. Ruby Rich, publicada no jornal The Chicago Reader, é citada (em inglês) no livroScreenplays of the African American Experience, editado por Phyllis Rauch Klotman e publicado pela Indiana University Press em 1991].



S E R V I Ç O


Mostra L.A. Rebellion
de 19 a 23 de fevereiro de 2019

IMS Paulista
Av. Paulista, 2.424 (próximo as estações Paulista e Consolação do metrô)
Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
*Grátis: o debate do dia 23 tem entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1 ingresso por pessoa