Na década de 1970,
a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) iniciou uma política de
inclusão étnica, com o intuito de diversificar seu quadro de alunos. Nesse
contexto, estudantes afro-americanos ingressaram no curso de cinema, onde produziram
filmes inovadores, que questionavam a indústria de Hollywood, trazendo as
narrativas negras para o centro da cena. Este amplo conjunto foi designado pela
crítica, posteriormente, como L.A. Rebellion. Parte dessa produção pode ser
assistida na Mostra L.A. Rebellion
que o Instituto Moreira Salles apresenta, nesse mês de fevereiro.
A seleção será
exibida no IMS Paulista, de 19 a 23/2. A mostra reunirá 14 títulos, produzidos
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. São curtas, médias e longas
exibidos em cópias em formatos digitais ou em 16 mm, cedidas pelo arquivo da
UCLA. A curadoria da mostra é de Luís Fernando Moura, pesquisador e programador
de cinema, e de Victor Guimarães, crítico, curador e professor.
A programação
inclui debates e apresentações de críticos e pesquisadores. No dia 23 de
fevereiro, às 18h, o crítico Heitor Augusto e a jornalista Mariana Queen
Nwabasili conversarão sobre os diálogos entre as obras da L.A. Rebellion e o
cinema contemporâneo.
A mostra exibida
no IMS inclui títulos de nomes célebres, como Charles Burnett (vencedor de um
Oscar honorário em 2018) e Julie Dash (primeira mulher negra a dirigir um
longa-metragem estreado comercialmente nos EUA), além de outros menos
conhecidos, como Zeinabu irene Davis, Alile Sharon Larkin, Haile Gerima, Larry
Clark e Billy Woodberry. Compromissados com um projeto de cinema autônomo, eles
construíram suas obras na UCLA, em um contexto ainda marcado pelas tensões das
lutas pelos direitos civis.
Segundo os
curadores, os diretores buscavam novas formas de representação, produzindo um
cinema que fosse voltado para o público negro. “Contra o que, exatamente, eles
se rebelavam? Em primeiro lugar, contra o quase século de imagens que os
precedia, esse espelho embaçado de Hollywood em que, na maioria esmagadora do
tempo, negros e negras não podiam se reconhecer. Era preciso inaugurar um outro
ambiente cinematográfico, próximo às sensibilidades e aos desejos que surgiam
das comunidades afro-americanas”.
Realizados sempre
com orçamentos mínimos, os filmes eram produzidos de forma colaborativa. O
cineasta Charles Burnett, por exemplo, atuou como roteirista, fotógrafo e
operador de câmera em várias obras dos seus colegas. “Os créditos dos filmes
revelam como essa produção era oriunda de um fazer em comunidade, no sentido
mais simples e poderoso da palavra”, reiteram os curadores.
Ainda que com
tramas e estilos distintos, os diretores tocavam em pontos em comum, como a
busca de uma identidade negra autônoma, presente em Diário de uma freira
africana (1977), de Julie Dash, ou Seus filhos voltam pra você (1979), de Alile
Sharon Larkin; a crônica do cotidiano no gueto, retratado em Bush Mama (1979),
de Haile Gerima; ou ainda a referência aojazz norte-americano, em Dando um rolê
(1977), de Larry Clark. Em suas obras, eles também dialogavam com os cinemas
modernos produzidos na África e na América Latina, em busca de um novo olhar
que se opusesse aos modelos coloniais.
No conjunto de
filmes que compõe a L.A. Rebellion, também se destaca a produção das cineastas,
cujas obras questionavam os estereótipos associados à figura da mulher negra.
No longa-metragem Mulher africana, EUA (1980), por exemplo, a diretora Omah
Diegu se inspira em sua própria trajetória para contar a história de uma
imigrante nigeriana que luta para sustentar sua filha. A diretora Zeinabu irene
Davis, por sua vez, constrói uma reflexão sobre o corpo feminino no curta
Ciclos (1989).
Esta seleção
evidencia trabalhos que, ainda que pouco conhecidos pelo público, se tornaram
uma grande referência para a produção contemporânea. “Poucas vezes na história
existiu, até nossos dias, um conjunto tão vigoroso de filmes feitos de preto
para preto, de preta para preta, e que se afirmassem com tamanhas altivez e
independência. Os filmes dessa geração jovem e talentosa representam um tesouro
dos mais valiosos para o presente e o futuro do cinema”, afirmam os curadores.
P R O G R A M A Ç Ã O
terça,
19 de fevereiro
19h30 Bush Mama _sessão seguida de fala dos curadores
Luís Fernando Moura e Victor Guimarães
quarta,
20 de fevereiro
19h30 Abençoes seus pequeninos corações _após a sessão, haverá uma fala com
Mariana Shellard e Aaron Cutler
quinta,
21 de fevereiro
19h30 Exibição de
Curtas (Diário de uma freira africana / Mulher africana / Filha da resistência)
_os três curtas serão exibidos na mesma sessão
21h00 Bem-vindo de volta, irmão Charles _sessão seguida de fala do crítico
Heitor Augusto
sexta,
22 de fevereiro
19h30 Exibição de
Curtas (Um bocado de amigos / Ilusões) _os dois curtas serão exibidos na mesma
sessão
21h00 Uma imagem diferente _sessão seguida de fala da jornalista
Mariana Queen Nwabasili
sábado,
23 de fevereiro
16h00 Exibição de
Curtas (O cavalo / Ciclos / A bolsa / Seus filhos voltam pra você) _os quatro curtas serão exibidos na
mesma sessão
18h00 DEBATE
L.A. Rebellion, passado e presente _conversa com Heitor Augusto, Mariana Queen Nwabasili e mediação de
Victor Guimarães _grátis*
20h30 Dando um rolê
_sessão seguida de fala de Victor Guimarães
S I N O P S E S
Mulher africana, EUA
African Woman, USA
Omah Diegu [Ijeoma
Iloputaife] | EUA | 1980, 20', digital
Uma
imigrante nigeriana estuda dança em uma universidade nos Estados Unidos
enquanto luta para conseguir um emprego e sustentar a filha, que passa os dias
sozinha em casa. Seu cotidiano é atravessado por episódios de sexismo e
racismo, até o ponto em que um homem se passa por produtor para se aproximar e
abusar sexualmente da menina. Mulher africana, EUA tem fortes elementos
autobiográficos, refletindo os conflitos vivenciados pela própria Omah Diegu
(nascida Ijeoma Iloputaife, como assina no filme), estudante nigeriana que
chegara à UCLA para estudar cinema no fim dos anos 1970. Com uma trilha sonora
constituída por músicas tradicionais africanas e pelo jazz de John e Alice
Coltrane, e uma construção visual arrojada (a sequência final é particularmente
impressionante), o filme combina o talento narrativo da realizadora (que ela
atribui a suas vivências em solo africano que remontam à infância) e sua
experiência anterior como pintora na Nigéria. Omah Diegu realizaria, ainda no
contexto da escola, os curtas-metragens Obaledo (1980) e Atilogivu: The Story
of a Wrestling Match(1982), e, mais tarde, o longa autobiográfico The Snake in
My Bed (1995), financiado pelo governo alemão.
Abençoe seus
pequeninos corações
Bless Their Little
Hearts
Billy Woodberry |
EUA | 1983, 80’, DCP
Reestreado
em circuito nos EUA em 2017 pela distribuidora Milestone, Abençoe seus
pequeninos corações é centrado em Charlie, um desempregado que arranja bicos
para sustentar a família, e Andais, que precisa administrar a vida doméstica e
cuidar dos filhos. Este drama, trabalho de conclusão de mestrado na UCLA, se
passa no bairro de Watts, em Los Angeles, onde orquestra o choque entre dois
movimentos de vida, de marido e mulher, e, na mais fina tradição da crônica
social desenvolvida no contexto da L.A. Rebellion, atenta para a complexidade
dos laços e das relações entre as pessoas – para a empatia em meio ao conflito
moral –, por meio de aguda sensibilidade realista. Billy Woodberry se reuniu
aqui ao eventual colaborador e colega de classe Charles Burnett – que já havia
sido um dos fotógrafos de seu curta A bolsa, três anos antes –, responsável
pelo roteiro deste que é até hoje o único longa-metragem de Woodberry como
diretor. A escrita melodramática de A bolsa, calcada na compaixão diante de
ruínas morais – como fazer o que se diz certo se as coisas do mundo não vêm
vindo bem? –, é retomada para que se desenvolva talvez um dos filmes da L.A.
Rebellion em que as consequências da dramaturgia são encaradas de forma mais
frontal, longa e dedicada. É preciso, como na melhor colaboração entre cinema
clássico e consciência crítica, que a cena comunique paixão e contingência do
conflito. Para tanto, Nate Hardman e Kaycee Moore, protagonistas, estão afiados
e partilham pontos de vista de densidade semelhante, que não só expressam a
expectativa histórica dos papéis de gênero como problema – político e dramático
–, como catalisam o retrato melancólico de um tempo e de um espaço. Como em A
bolsa, o valor do dinheiro e do trabalho na sociedade americana é objeto e
disruptor de uma hipótese, enquanto o jazz empresta notas emocionais e subtexto
político.
Bush Mama
Haile Gerima | EUA |
1979, 97', 16 mm
Das
obras-primas fundacionais do que se entende por L.A. Rebellion, o crucial Bush
Mama foi o trabalho de conclusão de mestrado de Haile Gerima – etíope que
migrara para Los Angeles em 1967 – na UCLA, em 1975. Aqui está um dos encontros
do diretor com a fenomenal atriz Barbara O. Jones – uma das mais prolíficas do
contexto da L.A. Rebellion – e uma veneração capital à sua presença em cena,
exibida em cópia cedida pelo arquivo da universidade. A ficção desbrava o drama
agudo de Dorothy, moradora de um inquieto quarteirão do bairro de Watts, que se
vê diante de um excesso de realidade: seu companheiro está preso, enquanto ela
precisa cuidar de sua filha e de uma gestação, enfrentando o protocolo míope da
assistência social, a ubiquidade das normas disfuncionais e o bombardeio do
juízo público em um estado de coisas em que a violência dá molde às dinâmicas
coletivas. Dedicado ao ponto de vista da personagem, Gerima conduz a narrativa
como uma arrojada busca de formas e de forças, como quem está seguro de que,
para comunicar um desejo, é preciso inventar uma alternativa. É preciso
ensinar-aprender a filmar a mobilidade (concreta e simbólica) de uma mulher
negra – de Dorothy –, no branco cinema. O que deve acontecer com a
representação para que Dorothy se mova? Como inscrever o olhar de uma mulher
como ela num filme? A personagem de Barbara O. Jones nos guia como projeto
ativo de corpo-olhar, e o tempo da peregrinação termina por colapsar, de dentro
da dramaturgia, os fluxos romanescos, criando estonteantes sequências que não
cabem no compasso clássico, ritmadas então como um entorpecido jazz, porque
atento demais: a política aqui é musical como condição discursiva, e a
realidade será assim movida pelos devaneios entre a dicção e a vertigem – como
a palavra que conclama: mova-se, Dorothy! Mova-se com Dorothy, espectador!
Gerima aqui talvez tenha inventado uma pedagogia (a se apreender).
Filha da resistência
Child of Resistance
Haile Gerima | EUA |
1972, 36', 16 mm
Era
outubro de 1970 quando Angela Davis foi presa em Nova York, identificada como
cúmplice no caso dos irmãos de Soledad, três presidiários negros acusados de
assassinar um policial branco. Após ver imagens da autora e ativista algemada,
o então estudante de cinema Haile Gerima teve um sonho, que materializou em
Filha da resistência. São deslumbrantes 35 minutos de loucura de uma
presidiária que, interpretada pela grande Barbara O. Jones – protagonista
também do posterior primeiro longa do diretor, Bush Mama –, se percebe
obsediada por uma profusão de símbolos da violência sofrida por pessoas negras
na América. Confinada na cela, resta à prisioneira ritualizar a ruína da
libertação – e a desesperança individual se descobre no movimento da
coletividade. Como comenta a ensaísta Kariima Ali, o monólogo imaginado pela
personagem em muito desdobra os escritos revolucionários de George Jackson, um
dos presos no caso vinculado a Davis – enquanto, do outro lado das grades,
desfilam algemas, correntes, cadeiras elétricas, mas também expressões do
hedonismo capitalista, como um irônico playground de tormentas que codifica a
silhueta da nação americana –, ou o que Jackson chamaria de "'mercado de
pulgas' do fascismo e do capitalismo de consumo". É frontal a maneira de
Gerima desbravar a substância da violência, busca mais exclamativa em seus
filmes que nos de muitos de seus colegas de geração, e suas incontornáveis
obras-primas inaugurais – como Filha da resistência – elegem a instituição
policial como concreção contemporânea da escravidão de pessoas negras. A partir
dela, aqui se desenvolve uma espécie de cosmologia moderna da opressão, cuja
missão é de comunicação popular e cujo afluente final é, em tom amargo, mas
luminoso, a reivindicação persistente da reunião para a rebelião.
Ciclos
Cycles
Zeinabu irene Davis
| EUA | 1989, 17', digital
A
personagem da atriz Stephanie Ingram aguarda a menstruação, e sua apreensão
logo se aprofunda em transe. Confinada em um apartamento, elege uma faxina,
depois um banho, para se distrair da espera. Se o alvoroço da dúvida reivindica
um futuro – o que será amanhã?, para onde vou? são questões que martelam como
mantra maior, de rima histórica –, o espírito da personagem vai se desgarrando
do script social, para se reinaugurar em pequenos prazeres, prosaicas, mas
fabulosas preces, signos que se derramam do tempo cotidiano em dança entre
corpo, filme e história. Hoje professora da Universidade de San Diego, a
diretora Zeinabu irene Davis já havia realizado um primeiro mestrado em Estudos
Africanos na UCLA quando, em 1989, terminou seu segundo, adquirindo um título
de Belas-Artes em Produção de Cinema e TV. Ciclos é fruto imediato desse
processo e, embora exemplar já tardio nas gerações da L.A. Rebellion, serve de
entrada em retrospecto para uma perspectiva de gênero que é das mais argutas
buscas do conjunto, levada a cabo não exclusivamente, mas de maneira direta,
por algumas das mulheres diretoras ligadas ao grupo. Como sugere a pesquisadora
Ayanna Dozier, aqui Davis investiga o corpo feminino negro não como simples
representação, calcado nos enquadramentos sociais dos corpos das mulheres
negras. Em vez disso, transfigura a presença de Stephanie em afetos que agitam
a escrita fílmica e recuperam os valores de uma poética do corpo. Em Ciclos,
"o corpo feminino negro é apresentado como uma força de ação". No
horizonte, afinal, uma coletividade se anuncia à visão, modesta e lindamente.
Diário de uma freira
africana
Diary of an African
Nun
Julie Dash | EUA |
1977, 15', digital
Em
mais uma homenagem ao corpo da atriz Barbara O. Jones, Julie Dash adapta uma
história da escritora Alice Walker, pondo em cena o fluxo de consciência de uma
freira negra vivendo em Uganda. Em uma visada lírica da feminilidade negra que
remete ao cânone experimental, ao do filme-ensaio e ao estudo do rosto no
cinema, este compêndio de confissões muito bonitas amarra e desamarra os
vértices de um triângulo entre a prece católica, as origens africanas da
espiritualização – note-se, a propósito, a trilha sonora percussiva – e a
autonomia do corpo, em que se deposita a expectativa do gozo, da felicidade, da
mobilidade, da autenticidade – perceba-se os enquadramentos, mas também os
desenquadramentos, que buscam os mínimos movimentos da personagem. Julie Dash
tem em seu currículo filmes de época e que observam personagens em êxodo, como
o seu paradigmático longa Filhas do pó (Daughters of the Dust, 1991), e com
esse retorno sistemático a capítulos da diáspora – pela recriação de diferentes
paisagens e estatutos, da história social à história do espetáculo, como em
Ilusões –, parece levar a cabo o franco projeto de especular documentos e mitos
para desenhar pontas soltas de uma genealogia outra para a existência da mulher
negra em contexto colonial, em variadas expressões geográficas. A professora da
Universidade de Chicago Allyson Nadia Field registra que Dash, aqui, estava
impressionada com a descrição do conflito íntimo vivido pela freira em Walker,
uma personagem que sabia o paradoxo que era "trazer a morte para um povo
imaginário" ao mesmo tempo que estava a seu serviço – e cujo ponto de vista
obliterado é então exposto pela imaginação à nossa percepção da história. [O
texto de Allyson Nadia Field é um dos publicados (em inglês) no livro L.A.
Rebellion: Creating a New Black Cinema, editado em 2015 pela Universidade da
Califórnia]
Uma imagem diferente
A Different Image
Alile Sharon Larkin
| EUA | 1982, 52', 16 mm
Alana
(Margot Saxton-Federella) é uma jovem que trabalha em um escritório enquanto
desenvolve estudos de pintura. Seu cotidiano é marcado pelo esforço em se
tornar uma mulher independente e se rebelar contra as convenções impostas por
uma sociedade machista e racista. Seu colega de escritório e amigo, Vincent
(Michael Adisa Anderson), parece o parceiro ideal nessa busca por construir
autonomamente uma outra imagem de negritude. A amizade entre os dois parece
contrariar os estereótipos e subverter as expectativas de todos ao redor, até o
momento em que, enquanto Alana dorme a seu lado, Vincent se aproveita da
situação e tenta estuprá-la. Uma imagem diferente é uma investigação sobre como
a masculinidade tóxica é formada em uma cultura visual marcada pela extrema
objetificação do corpo feminino. Outdoorspublicitários e revistas pornográficas
atravessam a paisagem urbana retratada pelo filme, em contraste com as
fotografias e pinturas africanas que povoam a casa da protagonista e sinalizam
um outro caminho de representação das mulheres. Mais do que elementos de fundo,
porém, essas imagens são constantemente convocadas pela montagem – repetidas,
justapostas, tensionadas –, assumindo a centralidade em uma ficção que se abre
para o gesto analítico típico do ensaio fílmico. A música original, de forte
inspiração africana, também contribui para a construção de um filme fortemente
influenciado pelo pan-africanismo que marcou o processo de formação de uma
geração de jovens negros universitários nos Estados Unidos – e teve grande
impacto na UCLA naquele momento. Esse olhar para a África como fonte de uma
nova consciência política pode ser percebido também no filme anterior de Alile Sharon
Larkin, Seus filhos voltam pra você, ou mesmo em outros filmes da L.A.
Rebellion, como Bush Mama e Mulher africana, EUA.
O cavalo
The Horse
Charles Burnett |
EUA | 1973, 14', DCP
A
paisagem desolada de um faroeste moderno. A imobilidade, o silêncio, o tempo
que escorre lentamente enquanto um grupo de homens brancos espera na varanda de
uma casa de fazenda. Um menino negro se despede de um cavalo doente prestes a
ser sacrificado, enquanto os outros esperam pela chegada do pai do garoto para realizar
o trabalho. Essa descrição sumária aponta para um filme em que os eventos
narrativos são menos importantes do que uma atmosfera singular, composta por
uma exuberante paleta de cores e por uma montagem que aposta na qualidade dos
silêncios e na duração. O desejo inicial por filmar O cavalo se deve ao impacto
provocado em Charles Burnett por um conto de William Faulkner (“The Bear”): o
realizador desejava compor um filme que partilhasse algo da atmosfera sulista
de Faulkner e de sua habilidade para construções metafóricas. Naquele momento,
Burnett já estava imerso no longo processo das filmagens de seu primeiro
longa-metragem, O matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977) – seguramente o
filme mais conhecido da L.A. Rebellion –, mas se viu obrigado a esperar, porque
o ator que ele escolhera para o papel principal estava na prisão, e sua
liberdade condicional era repetidamente adiada. Foi então que decidiu partir
com a pequena equipe para uma região rural a cerca de 300 quilômetros de Los
Angeles para filmar o curta-metragem. Nascido em Mississippi em 1944, Burnett
se mudara para L.A. ainda criança, em uma onda migratória partilhada por muitas
famílias negras sulistas que partiram para a Califórnia em busca de
oportunidades. A carga simbólica do sul escravocrata, porém, pode ser notada em
filigrana em vários de seus filmes. Nas trocas de olhares de O cavalo, o
realizador enfrenta essa iconografia com a sutileza que lhe é peculiar: o
racismo torna-se essencialmente uma questão de olhar. No dizer de Burnett, o
filme é “uma alegoria sobre o poder sulista e seu declínio”. [Várias
entrevistas de Charles Burnett foram reunidas no livro (em inglês) de Robert E.
Kapsis, Charles Burnett: Interviews, editado pela University Press of
Mississippi em 2011]
Ilusões
Illusions
Julie Dash | EUA |
1982, 36', DCP
Durante
a Segunda Guerra, o encontro entre Mignon Duprée (Lonette McKee), uma
assistente de produção em Hollywood, e Esther Jeeter (Rosanne Katon), cantora
negra contratada para dublar atrizes brancas em cenas musicais, torna-se um
ensaio com sabores satíricos sobre a indústria cultural, no que se revela um
raro debate fílmico sobre colorismo. As duas personagens são como espelhos
turvos uma da outra, talvez duros de encarar pelo que deixam entrever, mas preciosos
ao reconhecimento – o que temos em comum? O que nos diferencia? As duas
mulheres terminam por desenvolver uma espécie de cumplicidade, sempre
desconcertante, já que Mignon, de pele clara, passa por branca diante de seus
colegas de trabalho, em vias de ter sua identidade descoberta, quiçá afirmada.
Este, que é o trabalho de conclusão de mestrado de Julie Dash – só restaurado
em 2014 –, é um caso muito incomum de filme no conjunto da L.A. Rebellion, em
que a maioria dos atores é branca (uma série de trabalhos não têm sequer um
corpo branco em cena), ao mesmo tempo que é também exemplar raro de narrativa
filiada às formas mais clássicas do cinema estadunidense. Há, nesse sentido,
uma espécie de infiltração necessária nas estratégias do olhar hegemônico, vistas
por uma diretora negra que resolveu filmar segundo a gramática do establishment
branco macho. Mignon, que termina por viver numa espécie de interseção entre
dois horizontes de experiência social, é também um laboratório imprevisto para
a representação (pública e fílmica) do racismo e, diante de Esther, algo em seu
drama próprio talvez entre em ruína ou se transforme, restando entender ainda
como vai afetar a sociedade instituída ao redor, que dela demanda e a ela
convoca. A propósito, a voz usada na dublagem da atriz branca é a de Ella
Fitzgerald, nas canções “The Starlit Hour” e “Sing Me a Swing Song, and Let me
Dance”.
Dando um rolê
Passing Through
Larry Clark | EUA |
1977, 105', DCP
Realizado
como filme de conclusão de mestrado na UCLA por Larry Clark – que já havia
dirigido na escola o curta Tamu (1970) e o média-metragem As Above, So Below
(1973) –, o filme tem como fio narrativo a história de Eddie Warmack (Nathaniel
Taylor), saxofonista de jazz que deixa a prisão após cumprir sua pena pelo
assassinato de um gângster branco. Enquanto tenta convencer seus colegas
músicos a escapar da máfia da indústria fonográfica, que lucra com a exploração
do suor e do talento dos artistas negros, Eddie parte em uma busca – ao lado de
sua companheira Maya (Pamela B. Jones) – por seu avô, o lendário mestre
jazzista Poppa Harris, interpretado pelo veterano Clarence Muse, ator com uma
prolífica carreira de mais de 150 papéis e considerado o primeiro
afro-americano a “estrelar” um filme. À medida que a narrativa se move entre os
conflitos raciais e a busca pela identidade negra, o filme se transforma em
experiência visual e sonora inigualável. De forma ainda mais intensa do que nos
filmes anteriores de Clark, a ficção se desdobra ora em ensaio – a partir da incidência
de imagens de arquivo das lutas de liberação negra na África e nos Estados
Unidos –, ora em pura investigação visual e sonora, embalada pelo jazz de
vanguarda da Pan-Afrikan Peoples Arkestra, liderada por Horace Tapscott. Mais
do que oferecer um tema para o enredo ou um acompanhamento musical, o jazz é
tratado por Larry Clark como um princípio formal, que inspira o trabalho
fortemente experimental com as cores, as múltiplas camadas narrativas, as idas
e vindas entre passado e presente que desafiam qualquer noção de linearidade, a
extrema musicalidade da montagem. Para Clyde Taylor (historiador responsável
por cunhar o termo L.A. Rebellion), trata-se do “mais ambicioso esforço de
construir um filme em torno dos ritmos e dos movimentos da tradição jazzista”.
Para o crítico francês Raphaël Bassan, em certa medida, Dando um rolê poderia
ser considerado “o único jazz film da história do cinema”. [Um grande projeto
de pesquisa coletivo, intitulado Liquid Blackness, foi iniciado na Georgia
State University, nos EUA, inspirado pelo encontro das pesquisadoras e
pesquisadores comDando um rolê. Uma coletânea de ensaios a partir do filme (em
inglês) pode ser conferida aqui: bit.ly/lareb2] [A frase de Clyde Taylor faz
parte do texto curatorial da primeira retrospectiva a reunir alguns dos filmes
dessa geração, em 1986, no Whitney Museum of American Art.
A bolsa
The Pocketbook
Billy Woodberry |
EUA | 1980, 13’, DCP
É
das coisas mais lindas o que Billy Woodberry fez neste curta baseado em conto
de Langston Hughes. Ambientado no bairro de Watts, em Los Angeles, e sob
fotografia de Charles Burnett, Gary Gaston e do brasileiro Mario Silva, uma
epopeia infantojuvenil cindida em dois atos: de dia, o olhar dos meninos sobre
o tempo da brincadeira e os indícios de vida, enquanto um nostálgico blues de
Lead Belly se repete e faz do filme uma cantiga em disparada. À noite, o garoto
que brincava tenta roubar a bolsa de uma senhora, negra como ele, que observava
uma vitrine na calçada. A reação da senhora ao impropério é levar o menino Ray
para casa e lhe dar, sim, um aconchego maternal, além de uma razoável lição de
moral, que, no entanto, é discretamente subversiva: porque também ela admite
não poder ser o eixo de uma sociedade integrada, pequeno-burguesa. Pelo
contrário, é uma espécie de mesma de Ray – sem nunca poder ser exatamente, e,
portanto, não seria capaz de compreender o garoto de todo. Daí a melancolia da
comunidade, que a faz dissensual e que guarda a preciosa singularidade de cada
rosto. A bolsa termina por se distinguir como um ensaio melodramático que tem
como um dos objetos mais caros a insuficiência da sociologia em traduzir o que
os afetos comunicam, e vice-versa. Woodberry, sagaz cronista e filiado a traços
da imaginação neorrealista, é certamente um par criativo de Charles Burnett,
interessado na correspondência e na defasagem entre os movimentos do mundo e os
dramas mais íntimos, secretos, entre a dor e os pequenos prazeres, entre o
destino e a fuga. Este filme – como o longa Abençoe seus pequeninos corações,
não à toa roteirizado por Burnett – voltou a circular nos últimos anos graças
ao importante trabalho de distribuição da independente Milestone.
Um bocado de amigos
Several Friends
Charles Burnett |
EUA | 1969, 22', DCP
O
segundo filme estudantil de Charles Burnett, após um projeto sem título no ano
anterior, hoje considerado perdido, tem a magnitude de uma ruptura radical: as
periferias negras norte-americanas parecem filmadas pela primeira vez.
Prosaicas cenas cotidianas – uma briga, o conserto de um carro, a tentativa de
mover uma máquina de lavar – filmadas nas imediações de South Central, bairro
onde Burnett cresceu, adquirem a força da inauguração de um mundo feito de
gestos, posturas, jeitos de falar que o cinema hollywoodiano negligenciou ou
pasteurizou por décadas a fio. Essa crônica negra prefigura a obra-prima O
matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977), estabelece os principais temas e as
marcas do estilo do cineasta mais conhecido da L.A. Rebellion, laureado com um
Oscar honorário pela carreira em 2018. Nas palavras de Burnett em uma
entrevista, o tema do filme é “essa sensação que você tem às vezes, quando
atinge um ponto em que existe um sentimento de que você não vale nada”. Filmado
em 16 mm, com um elenco formado por atores não profissionais, sincronizado e
montado à mão nas dependências da UCLA, o método de realização praticado em Um
bocado de amigos sumariza os principais traços das produções da L.A. Rebellion:
baixo orçamento, trabalho intensamente colaborativo entre os estudantes (que
exerciam diversas funções nos filmes uns dos outros), liberdade de
experimentação. O filme tem participação, na equipe de som, do brasileiro Mario
Vieira da Silva, à época estudante da UCLA, e colaborador íntimo de Burnett.
Alguns anos mais tarde, Silva seria operador de câmera em A bolsa, de Billy
Woodberry. [Várias entrevistas de Charles Burnett foram reunidas no livro (em
inglês) de Robert E. Kapsis, Charles Burnett: Interviews, editado pela
University Press of Mississippi em 2011]
Bem-vindo de volta,
irmão Charles
Welcome Home Brother
Charles
Jamaa Fanaka | EUA |
1975, 91', DCP
O
contexto da realização de Bem-vindo de volta, irmão Charles não poderia ser
mais controverso. Uma das maneiras de compreender o repertório da L.A.
Rebellion é situá-lo como um contraponto crítico às imagens sedutoras de
violência e erotismo da contemporânea produção da Blaxploitation, esse polêmico
conjunto de filmes dos anos 1970 em que um intenso protagonismo negro no cinema
comercial estadunidense convivia, segundo seus críticos, com a veiculação de
clichês nocivos sobre a negritude. Em consonância com as posições do movimento
negro da época, os estudantes afro-americanos da UCLA teciam fortes críticas a
essa produção, buscando afastar-se o máximo possível de sua estética. O próprio
Jamaa Fanaka realizara na escola, em 1972, o curta-metragem A Day in the Life
of Willie Faust, or Death on the Installment Plan, que joga com os códigos da
Blaxploitation, mas oferece uma visão sombria e pessimista sobre o destino de
um jovem viciado em heroína (interpretado pelo próprio Fanaka). Nesse contexto,
é possível imaginar a surpresa de todos quando Fanaka propôs, como um de seus
projetos de graduação, realizar um longa-metragem contando a história de um
ex-presidiário que decide se rebelar contra o sistema racista que o encarcerou
injustamente, cometendo uma série de estupros e assassinatos em uma vingança
brutal contra seus algozes brancos (com a ajuda de insólitos superpoderes
adquiridos como resultado dos experimentos científicos aos quais fora submetido
na prisão). Esse enredo tão próximo do universo da Blaxploitation seria
filmado, porém, em um contexto diametralmente oposto ao das produções
comerciais: com um orçamento formado por bolsas de mecenato cultural e
economias de seus pais, a produção se arrastaria por 17 meses, com filmagens
limitadas aos fins de semana, para permitir o acesso irrestrito aos
equipamentos da universidade (com o colega Charles Burnett como operador de
câmera). O resultado econômico não poderia ser mais auspicioso: o filme
conseguiria um contrato de distribuição, arrecadaria US$ 500.000 nas salas de
cinema e permitiria a Fanaka realizar outros dois longas-metragens ainda como
estudante: Emma Mae (1976) e Penitentiary (1979), tornando-se o único diretor
de sua geração a ter obtido algum sucesso comercial naquele momento. O
resultado estético não poderia ser mais complexo e desafiador: equilibrando-se
entre o humor nonsense e a crítica social radical, entre a adesão e o
distanciamento frente aos códigos da Blaxploitation, o filme trabalha uma série
de estereótipos raciais em múltiplas camadas de interpretação.
Seus filhos voltam pra
você
Your Children Come
Back to You
Alile Sharon Larkin
| EUA | 1979, 27', 16 mm
O
processo de construção da identidade de mulheres negras é o mote principal da
composição das protagonistas na obra de Alile Sharon Larkin realizada na UCLA.
Desde o curta-metragem The Kitchen (1975), que narra os conflitos de uma mulher
com os padrões de beleza que excluem seu cabelo crespo, até o média Uma imagem
diferente, que retrata a busca de uma jovem por reinventar o entendimento sobre
sua descendência africana – enquanto enfrenta a masculinidade tóxica que a
rodeia por todos os lados –, diferentes aspectos são trabalhados em diferentes
filmes. Em Seus filhos voltam pra você, Larkin explora esse processo a partir
da perspectiva de uma criança, Tovi, interpretada por Angela Burnett – a
sobrinha de Charles Burnett, que também atua em O matador de ovelhas (Killer of
Sheep, Charles Burnett, 1977) e Abençoe seus pequeninos corações (Billy
Woodberry, 1980). A menina vive com a mãe, Lani (Patricia Bentley King), que
luta para criá-la sozinha enquanto o pai partiu para a África para se juntar à
guerrilha do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Enquanto a mãe
se divide entre o trabalho doméstico e as idas ao escritório da assistência
social, Tovi passa parte do tempo com uma tia rica, Chris (Simi Nelson), irmã
de seu pai, que tenta conseguir por diversos meios a guarda da menina. Um dos
traços formais mais marcantes de Seus filhos voltam pra você é o esforço da
câmera por enxergar através dos olhos de Tovi, cuja descoberta do mundo – de
suas desigualdades e injustiças – coincide com a formação de sua consciência
política, atravessada pela memória do pai e pelos ensinamentos de sua escola
afrocêntrica progressista. Nas palavras da influente crítica americana B. Ruby
Rich, “Larkin é uma cineasta jovem e original, cujo orgulho e sensibilidade só
são comparáveis a seu profundo senso estético. Se há um filme tão delicado
quanto este, eu desconheço.” [A frase de B. Ruby Rich, publicada no jornal The
Chicago Reader, é citada (em inglês) no livroScreenplays of the African
American Experience, editado por Phyllis Rauch Klotman e publicado pela Indiana
University Press em 1991].
S E R V I Ç O
Mostra L.A. Rebellion
de 19 a 23 de fevereiro
de 2019
IMS Paulista
Av. Paulista,
2.424 (próximo as estações Paulista e Consolação do
metrô)
Ingressos: R$
8 (inteira) e R$ 4 (meia)
*Grátis: o debate do dia 23
tem entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1
ingresso por pessoa